Eu já escrevi e reescrevi esse manifesto diversas vezes. Sempre me faltam palavras pra dizer exatamente o que eu quero dizer e pra não ser muito direto e deixar várias perguntas no ar eu optei por fazer isso. Esse texto (não) deve conter todas as respostas que vocês precisem. É estranho mostrar pro mundo algo tão pessoal e tão exclusivamente meu. Tentar elaborar sobre pensamentos que eu tenho faz tempo e que são repletos de consequências. E acima de tudo tem muita coisa sobre mim que eu ainda quero manter pra mim, muita coisa que eu tenho que descobrir na vivência.
Pra falar sobre mim, sobre como eu me sinto, sobre o porquê de eu me identificar como eu me identifico é preciso falar sobre muitas coisas: minhas experiências e minha vida.
Tudo começa quando eu tinha 8 anos e jogava um jogo de 3DS aonde seu rosto era escaneado –Face Raiders– e reconhecimento de imagem era usado pra determinar coisas como gênero e idade: eu me escondia no banheiro e molhava o cabelo pra pentear ele de forma que a câmera do jogo me reconhecesse como menina. Isso fazia com que eu me sentisse culpado. Tinha algo ali dentro de mim que me tornava diferente de o que era esperado que eu fosse. Culpa: essa vai ser uma das nossas palavras-chave.
Pulando pra 2016: eu tinha um cabelo muito grande, gostava de me apresentar de maneira andrógina e quando uma menina me olhou de longe e falou que eu estava parecendo uma menina meu primeiro pensamento foi “Esse é o objetivo” mas eu me parei por achar aquele pensamento muito estranho e intrusivo.
Avançamos alguns anos e estamos em 2019/20 e eu vivi a fase femboy. Nada a adicionar.
A cronologia que eu quero montar aqui acaba em Janeiro de 2024, quando eu vejo uma propaganda da Ana Taylor Joy e isso me faz entrar em um lapso depressivo em plena viagem aos Estados Unidos. Um pensamento se forma na minha cabeça “Se eu pudesse me matar pra renascer minimamente parecido com ela eu faria isso na mesma hora”. Não acho que preciso argumentar que esse não é o pensamento mais cisgênero que existe.
O ponto que eu quero fazer é que durante muito tempo e desde muito cedo eu sempre tive uma relação estranha com o feminino. Eu sempre tive uma relação estranha comigo mesmo que sempre tive medo de elaborar sobre. Por questão de segurança, por viver em um ambiente evangélico conservador que era totalmente hostil a qualquer tentativa minha de expressar esse lado feminino, por culpa. É como se tivesse algo dentro de mim esse tempo todo que eu e todos a minha volta tentamos ativamente reprimir, por causa do que me é esperado socialmente como filho de uma família evangélica, por causa do que me é esperado socialmente como homem, por causa do que me era esperado como evangelico, mesmo que no fim das contas eu não me identifique como nenhuma dessas coisas.
A primeira vez que eu tive uma sensação de dúvida a respeito do gênero com o qual eu me identificava foi aos 13 anos. Meu pensamento imediato foi “Pelo amor de Deus, não”. Com essa súplica seguimos para o próximo tópico.
Tem toda uma expectativa sobre quem seremos, como devemos agir, com quem nos relacionamos. Não falo exclusivamente sobre nascer homem e passar a não se designar assim com o tempo, mas sim sobre a minha criação.
Eu pessoalmente me senti por muito tempo culpado. Culpado por ser diferente de todos a minha volta, como se o ato de viver em si fosse uma piada que todos pareciam entender menos eu. Vir de uma família altamente conservadora também mexeu nesse processo. Ter qualquer senso de feminilidade martelado fora de mim à duras reprovações e julgamentos formou em mim uma sensação de que ser autentico a mim mesmo fosse errado, porque isso era visto como anormal. E para meus genitores anormalidades na visão deles eram algo a ser corrigido.
Dos meus 0 aos 12 anos eu me descrevia como evangélico. O ambiente da igreja era altamente LGBT-fóbico, não é preciso de muito tempo numa igreja evangélica pra se ouvir a frase “Entendemos, amamos, mas não concordamos”. Não ter sua existência concordada é como ser negado, ser negado por uma comunidade aonde todos que lhe são próximos pertencem, que você sabe que caso rejeitado nenhum dos seus familiares dirá “Aonde ela não pode pertencer não é meu lugar” é uma experiência alienadora.
Alienado. Me sentia culpado por não me encaixar. Em Psicopata Americano acompanhamos o personagem de Patrick Bateman, um homem que vive uma vida fajuta e superficial pra se encaixar. Em uma conversa com sua noiva no carro ela pergunta pra ele o porque de ele trabalhar em seu emprego se ele odeia o que faz ao que ele responde “Eu quero me encaixar”.
Se encaixar, mas como se encaixar se qualquer tentativa de ser eu mesmo era reprovada, martelada pra fora de mim a fim de me tornar algo que não era eu. Algo que não era eu, ir a lugar aos quais eu não pertencia. Por isso eu sentia que não era feito da mesma coisa que todos ao meu redor: porque o que todos viam e interagiam não era eu de fato mas uma armação, algo projetado pelos outros e não autêntico a mim mesmo.
Olho uma mulher bonita no bar, ou um homem bonito no bar, ou numa festa, ou num aplicativo de namoro, ou no Instagram. Beijamos, saímos, chaga a hora do sexo: todos os passos anteriores me dão prazer, eu gosto disso, eu sinto um pouco que estou fazendo um personagem mas relevo. Chega a hora do sexo e por algum motivo eu me pego ficando entediado e torcendo pra que aquilo acabe o mais cedo possível. É bizarro admitir isso publicamente mas eu consigo contar nas mãos as vezes que eu de fato gozei numa relação sexual. Pra mim o prazer do outro bastava e era aquilo mesmo, vida que segue.
Eu percebi que isso era uma linha de pensamento fugitiva, que ignorava o que eu sentia de fato: que o sexo pra mim era uma relação de estar no lugar errado na hora errada. Um constante sentimento de não-pertencimento, que aquilo que eu fazia era apenas um papel a ser mantido. Um personagem.
Quanto mais eu pensei a respeito disso mais eu percebia que era como se eu estivesse ocupando o lugar errado, como se houvessem expectativas a meu respeito que eu nunca seria capaz de corresponder. Como uma peça de dama num jogo de xadrez, participando de um jogo com regras que não deveriam se aplicar a ela.
Por isso eu falo que não gosto de sexo: por causa da constante sensação de estranhamento e não pertencimento que eu sinto durante o ato. Eu não consigo extrair uma sensação de prazer independente da posição que eu ocupe na cama porque é como se eu ocupasse a posição social errada, como se eu estivesse fazendo apenas o que me era esperado, e não algo que eu quisesse embora eu queira.
Infelizmente, eu descobri que essas coisas que eu sinto e penso não são exclusivas a mim.
Eu digo infelizmente porque pra mim foi uma realização tenebrosa, a ideia de não me identificar com o gênero que me foi designado e suas consequências eram e ainda são absurdas e me põem em risco dado o fato de que atualmente eu não tenho meu próprio espaço, meu próprio dinheiro, meu próprio nada. Tem um sentimento de paz em saber que tem outras pessoas como eu lá fora, mas é como se isso não bastasse, é como se mesmo tendo experiências parecidas ninguém tivesse vivido o que eu vivi.
Eu sei que não é assim. Se fosse, talvez o manifesto tivesse outro titulo, porque de fato, nada do que eu vivi é individual. Embora eu nunca tenha conversado com nenhuma outra pessoa a respeito do que eu sinta, e que em retrospecto talvez tenha sido tolice me explanar de maneira tão explicita nesse texto eu meio que tenho a sensação de não estar sozinho nessa tá ligado ?